[aesop_chapter title=”Os Japoneses no Brasil” bgtype=”img” full=”off” img=”http://dashico.art.br/wp-content/uploads/2016/03/15-reduzida.jpg” bgcolor=”#888888″]
Os japoneses começaram a chegar ao Brasil logo nos primeiros anos do século XX. Aportaram em Santos e dirigiram-se, primeiramente, para as lavouras do interior de São Paulo e do Paraná. Ao longo das décadas, espalharam-se para diferentes lugares do território brasileiro, constituindo comunidades no litoral paulista, na Região Amazônica e também em municípios do Estado do Rio de Janeiro. Tiveram capital importância para o desenvolvimento da agricultura no país, desenvolvendo culturas de hortaliças, frutas e flores em geral, dentre outras. Os produtos alimentícios produzidos por essas comunidades foram estratégicos para abastecer o país que, na segunda metade do século XX, passava pelo processo da urbanização.
No Estado do Rio de Janeiro, destacam-se as comunidades da Baixada Fluminense (Santa Cruz, Nilópolis e Itaguaí), Petrópolis, Nova Friburgo, Angra dos Reis e a capital Rio de Janeiro. São notórios casos como o de Nova Friburgo, em que os japoneses inauguraram e aprimoraram culturas como a do caqui e de flores, repassando seus conhecimentos inclusive a outros proprietários da região, independente de sua nacionalidade.
No município de Angra dos Reis, os imigrantes japoneses tiveram destaque na indústria pesqueira, montando fábricas de beneficiamento de sardinha em vários pontos da Baía da Ilha Grande.
[aesop_chapter title=”Japoneses na Ilha Grande” bgtype=”img” full=”off” img=”http://dashico.art.br/wp-content/uploads/2016/04/foto_antiga-dashico-site.jpg” bgcolor=”#888888″]
Localizada em Angra dos Reis, litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, a Ilha Grande é atualmente um dos principais destinos turísticos do país. Afastada do continente, o acesso à ilha se dá por via marítima. Com território de 192 km2 e quatro unidades de conservação da natureza, a localidade abriga atualmente uma população aproximada de seis mil pessoas. Visitantes de diferentes partes do Brasil e do mundo procuram as praias, matas e águas calmas da região.
No passado, a Ilha Grande foi habitada pelo povo tupinambá. Nos séculos XVII e XVIII, a ilha foi reduto de navios piratas e teve fazendas de café e cana-de-açúcar no século XIX. Já no século XX, a economia girava em torno da produção de banana e da agricultura e pesca de subsistência. Nesse período, imigrantes de origem japonesa começam a instalar-se nas dezenas de vilas da região. Vindas de outros Estados do Brasil, sobretudo São Paulo, em busca de novas oportunidades, essas famílias vislumbraram o grande potencial pesqueiro do mar de Angra dos Reis e protagonizaram o principal ciclo econômico da Ilha Grande naquele período – o beneficiamento de pescado. A sardinha era abundante e constituiu o principal insumo desses empreendimentos.
As indústrias que ficaram conhecidas como “fábricas de sardinha” se espalharam pelo município. O principal produto confeccionado era a sardinha salgada enlatada, cujo mercado consumidor de maior importância se concentrava na região Nordeste do país. Famílias gregas, portuguesas e inglesas eram donas de indústrias no continente e na Vila do Abraão, mas a maioria desse negócio ficou a cargo dos imigrantes japoneses e seus descendentes.
Dezenas de indústrias orientais se espalharam pela Ilha Grande e Ilha da Gipóia. Praias de Japariz, Freguesia de Santana, Bananal, Matariz, Passaterra, Magariqueçaba, Ubatubinha, Longa, Araçatibinha, Vermelha, Camiranga, Armação e Praia da Fazenda abrigaram pelo menos um desses estabelecimentos. Na praia do Bananal, por exemplo, seis indústrias chegaram a funcionar.
As indústrias de Ilha Grande utilizavam um modelo familiar tanto de administração como de trabalho. As famílias nipônicas eram numerosas. A liderança era exercida pelo patriarca junto do filho mais velho. Os outros componentes da família se dirigiam para outros empreendimentos ou lugares, após o casamento. Foi dessa forma que núcleos da família Hadama se estabeleceram em Bananal, na Praia Vermelha e ainda no continente de Angra. O mesmo se deu com a Família Uehara que se dividiu pelas praias de Passaterra, Ubatubinha, Araçatibinha e Ilha da Gipóia.
Essa atividade trouxe impacto não só na paisagem, mas nas dinâmicas sociais e econômicas das vilas caiçaras da Ilha Grande. Por depender de matéria-prima do mar, as instalações para beneficiamento foram construídas próximas à faixa de areia da praia. Píeres também foram feitos para garantir o desembarque do peixe e o posterior escoamento do produto processado. Muitas das atuais estruturas de embarque e desembarque da Ilha Grande tiveram origem nesse período.
Os caiçaras, por sua vez, desempenharam importante papel nas indústrias japonesas. Aos poucos, o cotidiano dessas populações que era voltado para o interior da ilha ou “sertão” na prática da agricultura, voltou-se para o mar. Trabalharam junto com os japoneses na salga da sardinha.
Dona Carmen Tenório relata episódios do início dessa atividade na Praia do Bananal. Naquela época, sem energia elétrica e sem refrigeração, era necessário manipular o pescado imediatamente após o desembarque. Os barcos de pesca não tinham hora marcada para chegar. A sardinha era capturada e em seguida levada para alguma indústria da região, inclusive durante o período noturno. Dona Carmen conta que, nessas ocasiões, o velho Higa subia o morro com seu lampião belga para chamar cada trabalhador em suas casas. Conforme avançava, ele era seguido pelas pessoas que atendiam ao seu chamado e também se utilizavam de lampiões ou tochas de bambu para iluminar o caminho. Formava-se uma procissão. Ao chegar à praia, organizavam um círculo com as tochas e os trabalhadores se reuniam para a primeira etapa de limpeza do pescado. Seu Tião, marido de Dona Carmen, dizia que naqueles momentos muitas luzes cruzavam o céu.
Apesar de empregar um número significativo de trabalhadores, a indústria pesqueira de propriedade dos japoneses na Ilha Grande era caracterizada como um negócio familiar. A fábrica Kamome, na Praia de Matariz, porém, foi exceção.
De propriedade do senhor Hiruta, a Kamome foi adquirida na década de 1960 por um dos seus funcionários, Kuniji Odaka. O senhor Odaka transformou a Kamome na maior e mais bem-sucedida indústria de sardinha salgada do município.
Adotando um processo de reaproveitando quase que absoluto do insumo, além da sardinha salgada, a Kamome produzia farinha de peixe a partir dos pescados rejeitados para a salga. A farinha de peixe, por sua vez, gerava dois resíduos – água e óleo de peixe. O óleo era comercializado para a indústria química.
Entre as décadas de 1970 e 1980, a Kamome gerava emprego para aproximadamente 150 pessoas. Foi a última fábrica de sardinha a ser fechada no município, no ano de 1994.
[aesop_chapter title=”Um Novo Lugar” bgtype=”img” full=”on” img=”http://dashico.art.br/wp-content/uploads/2016/04/Isla_BAJA244.jpg” bgcolor=”#ff7c00″]
“Era véspera de Natal. Fazia muito calor. Lembro que quando cheguei à fazenda, me deram melancia. Nessa época no Japão nevava, não tinha melancia.”
Foi com essa simplicidade e eloquência que o senhor Odaka relatou o dia em que desembarcou no Brasil no ano de 1955. Quem observa a trajetória dos imigrantes japoneses talvez não se atente para a experiência vivida por esses indivíduos no desafio de adaptar-se a um novo lar. Sem a família, sozinho, Kuniji Odaka trabalhou em diferentes fazendas pelo Brasil até que se instalou na Praia de Matariz, Ilha Grande. Casou-se, teve três filhos e naturalizou-se brasileiro. Mas a desolação das primeiras horas em um país cujas referências naturais e culturais eram opostas à de sua terra natal ecoam até hoje na sua memória.
[aesop_image imgwidth=”500px” img=”http://dashico.art.br/wp-content/uploads/2016/04/Isla_BAJA253.jpg” credit=”Senhor Odaka, 2016″ align=”left” lightbox=”on” captionposition=”left”]
Entre os vários estranhamentos vivenciados pelos imigrantes nipônicos, a alimentação foi um dos mais sentidos. Para amenizar as lacunas na dieta, esses grupos passaram a produzir o que não dispunham na terra brasileira. Além de inaugurar o cultivo de frutos e vegetais, os japoneses também se dedicaram a fabricar alimentos processados importantes no preparo de suas refeições, como o molho de soja e o tofu. A fabricação, que a princípio era direcionada para o consumo doméstico, estendeu-se para outras comunidades de origem japonesa. Há, atualmente, conhecidas empresas fabricantes de produtos alimentícios orientais no mercado brasileiro que tiveram origem nesse fazer artesanal para a comunidade.
Na Ilha Grande, os japoneses se dedicaram ao beneficiamento de pescado. Conforme mencionado anteriormente, a sardinha salgada constituiu o produto principal desses empreendimentos direcionado aos consumidores brasileiros em uma época em que a geladeira não era comum nos lares do país. Mas, além da salga, os japoneses e seus descendentes preparavam uma especiaria, desconhecida pelos locais, mas apreciada pelas comunidades nipônicas de São Paulo e Paraná – o dashico, também conhecido como niboshi ou iriko.
O dashicô é um peixe seco e defumado utilizado como tempero, sobretudo para compor caldos e sopas como a missoshiro. Na Ilha Grande, o insumo utilizado para esta preparação era a sardinha. O dashico foi o primeiro produto produzido pelas indústrias pesqueiras de Ilha Grande. A técnica artesanal de preparo possibilitou aos japoneses levantar capital para construir os prédios das fábricas. A sardinha defumada não demandava instalações complexas, poderia ser preparada a partir de estufas à base de fogo a lenha e esteiras de bambu para secagem ao sol.
[aesop_chapter title=”A técnica de fabricação do Dashicô” bgtype=”img” full=”on” img=”http://dashico.art.br/wp-content/uploads/2016/04/Isla_BAJA070.jpg” bgcolor=”#888888″]
A técnica artesanal de fabricação do dashico dos japoneses da Ilha Grande é simples, porém extremamente meticulosa. Seu Tarumasa Tonaki e Dona Tsuruco Nakamura fabricaram muito peixe seco ao longo de sua juventude.
Hoje com 90 anos, Seu Taru ainda reside na Praia de Matariz, local onde ergueu a indústria Crescente junto com seu sócio Kikuiche Iha. Durante o funcionamento da fábrica e especialmente após o seu fechamento, ele produziu milhares de caixas de dashico que eram comercializadas em São Paulo. A faculdade de seu filho mais velho foi financiada pela renda que obteve com a venda desse produto.
O processo de fabricação
Limpeza do pescado.
Lavagem, retirada da cabeça e das vísceras.
Cozimento
O cozimento é rápido. Em épocas em que não havia água encanada, essa etapa era feita com água do mar.
Defumação
O cozimento antes da defumação só era feito devido ao grande o volume de peixe manipulado. Para quantidades menores, o ideal é subtrair a etapa de cozimento e partir diretamente para a defumação. Dessa forma, depura-se mais o sabor.
A defumação era feita em estufas à base de fogo a lenha. Uma espécie de “casinha” era montada, com gavetas nas laterais esquerda e direita, onde eram encaixados os tabuleiros contendo as sardinhas. No meio dessa estrutura, era aceso o fogo que queimava durante um dia inteiro, em ritmo brando e constante.
O calor e confinamento da estufa possibilitavam a defumação do peixe por igual. Nos casos de fabricação doméstica, em que se utilizam métodos improvisados, é necessário certificar-se de que todos os lados do pescado estão envolvidos. Dependendo da posição do tabuleiro de sardinha e do fogo, o peixe precisa ser virado, para mudar sua posição e garantir a defumação por completo.
Secagem
Após a longa defumação, o peixe era exposto por cerca de três dias ao sol. Jurais serviam de base para dezenas de tabuleiros confeccionados a partir do bambu. Ao longo dessa etapa, o peixe era virado para absorver a luz do sol de forma homogênea.
Raspagem e escoamento
A última etapa consistia na raspagem da superfície do pescado. Este, então, era acondicionado em caixas e vendido em São Paulo para japoneses e seus descendentes.
Dona Tsuruco foi casada durante muitos anos com o senhor Odaka. Trabalhou com ele na fábrica Kamome. A produção do dashico, porém, era seu negócio exclusivo. Ela pessoalmente se dedicava a esse fazer artesanal. Algumas vezes, seus filhos a auxiliavam em pequenas tarefas. Uma de suas filhas, Hiroko Odaka, recorda que passava as férias escolares virando o dashico no tabuleiro. Era também Dona Tsuruco que levava o carregamento para São Paulo, no bagageiro de um ônibus de linha comum, para oferecer no Mercado Municipal da Cantareira.
A intensificação da urbanização e a nova dinâmica do país levaram para cidade grande parte dos japoneses, proprietários ou arrendatários de pequenas porções de terra. Nos centros urbanos, se dedicaram a outras atividades econômicas e, por consequência, a relação desses grupos com a terra e com a pesca foi diminuindo. Nos dias de hoje, é raro encontrar quem prepare o dashico. Apesar de ser um produto altamente apreciado, o tempo de seu fazer destoa do ritmo da vida contemporânea.
[aesop_chapter title=”Outro Tempo” bgtype=”img” full=”on” img=”http://dashico.art.br/wp-content/uploads/2016/03/Isla_BAJA066-1024×681.jpg” bgcolor=”#a8d242″]
Para as filmagens do documentário, refizemos etapa por etapa o preparo do dashico junto com Seu Taru. Durante esse processo, nos demos conta de muitas coisas. Não se trata apenas de seguir o passo a passo de limpeza, defumação e secagem do peixe. Há que saber a intensidade exata do fogo e o tempo exato de exposição. É preciso abandonar o fogão a gás, queimar a lenha e esperar. Observa-se o fogo por horas. É nesse momento que restabelecemos conexão com a energia essencial dos elementos. O tempo da história se dilui em favor do tempo da natureza. E, nesse estágio, o conceito de espaço é abstraído.
Grande parte dos japoneses de Ilha Grande são originários de outra Ilha – a de Okinawa no Japão, em muitos aspectos semelhante à ilha brasileira. A relação dessa comunidade com o mar é, portanto, centenária. O tempo de fazer o dashico também era, para os japoneses, o tempo de lidar com o mar, manipular a riqueza que este sempre lhes proporcionou. Era o tempo em que traziam para nova terra os sabores da terra natal, utilizando os insumos e frutos do novo local de moradia.
O tempo cronométrico e o ritmo da vida moderna impõem ao homem o esquecimento de si. Sem ter acesso às experiências mais profundas, a capacidade humana de transformação se restringe. Por isso que quando aportamos em Ilha Grande e nos deparamos com o senhor Taruo cultivando a horta, colocando o covo, secando a lula, defumando o peixe… percebemos que a correria da cidade não nos leva a lugar algum.
Os modos de fazer tradicionais dos povos têm um caráter de rito, pois seu fazer vem sendo repetido ao longo das gerações. É por isso que quando nos propusemos a retomar essas práticas, passamos a perceber a vida em sua totalidade. Pois o ritual está além da realidade parcial do presente, ele congrega a sabedoria das eras, a vivência de todos aqueles que repetiram aquela ação. A tradição, portanto, não é sinônimo de anacronismo e engessamento. Pelo contrário, ela é energia potencial de transformação, à medida que nos faz romper através dos tempos.
A cultura japonesa tradicional leva o rito para cada momento do seu dia. É assumida uma postura de devoção em relação ao cotidiano. Esta pode ser expressa no cuidado estético para atividades corriqueiras como a escrita, representada pela técnica do shodo (caligrafia), e na confecção de utensílios domésticos, como a cerâmica ou ainda na paciente dedicação para alcançar o sabor mais apurado do dashico. É dessa forma que se chega a perfeição.